segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Declaração de amor a uma mulher que um dia eu nunca vi

Há vozes na minha cabeça
De gente que já se foi
De gente que insiste
Em continuar a dizer
Palavras suas
Como se minhas fossem

Eu sou mero canal
De águas barrentas
Onde passam barcos de junco
De gente que eu nunca vi

Eu sou um mau poeta
Não pela falta de rima ou de métrica
Mas pela falta de verdade

Eu sou, antes de tudo,
Uma ausência de mim mesmo
Sou um hiato

Queria te dizer
(Antes que eu te veja alguma vez)
Que eu nunca te amei.

Eu só amo essa ausência.
A inexistência
Minha lama é algo que não lhe pertence

Minha alma é mentira
Essas palavras são mentira
Minha carta de amor é mentira.

Me tire da alma dois braços
Não sentirei nada
Braços servem para sacudir pessoas
(E eu..) Eu apenas imploro para ser sacudido

Que uma mão me dê um tapa
E que eu tenha vergonha de mim
Que as bestas do meu jardim
Destrocem e des-sejam a mentira
Da minha alma

Eu te amo como mentira
E tudo mais é verdade inaudita
Meus pêsames e minhas condolências
Meus beijos falsos e meus olhares perdidos
Minha mentira, minha farsa, minha tragédia grega
São meros casos de orgulho ferido

Eu te amo como mentira.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Terra de Siena

(esse texto é um recorte de um texto bem maior que está sendo escrito em paralelo a esse blog, como eu achei que ele funciona razoavelmente bem sozinho, resolvi postar aqui ^^)

E lá estava ela. O vestido verde do verde mais claro que a imaginação humana poderia conceber. Abandonada aos próprios pensamentos naquela estação. Antoine à sua frente. Seus pensamentos se interrompiam a cada pessoa que cruzava a sua vista e ainda assim... Ainda assim pensava em correr em direção a ele e abandonar os pensamentos e toda aquela estação e toda aquela existência goticulada e se carregar pelos braços dele.

Mas o vestido verde claro de moça bem comportada não a deixava fazer isso. Tampouco a deixava a fita do mesmo verde claro que prendia seus cabelos. Menina bem comportada era tudo que havia nas cores da indumentária que lhe vestia. Mas a verdadeira cor de Ana não era aquele verde claro que tanto se impregnara na sua memória daquela cena. A cor agora era outra. Era marrom.

Não aquele marrom pastoso e doente e comum que abundava naquela estação. Era o marrom dos seus cabelos que presos pela fita se formavam em um bem asseado rabo de cavalo. Era o marrom terra de Siena queimada dos seus cabelos. Nunca estivera em Siena, não sabia qual a cor da terra de lá, sequer podia imaginar que seus cabelos tivessem a cor da terra daquele chão que nunca pisara. Mas sabia, de corpo e alma, completamente!, que não era o mesmo marrom. Não poderia ser o mesmo marrom. Se algum dia fosse aos campos da Siena e deitasse na terra, seus cabelos estariam em casa e tomariam para si toda a energia daquela terra queimada pelo Sol e dançariam esguios com o vento quando ela se levantasse.

Mas àqueles cabelos da cor da terra queimada fadara o destino um pedaço de pano do verde claro mais bem artificializado que a imaginação humana tivera sucesso em fazer. Se as árvores da Siena onde nunca estivera soltassem uma única folha verde que nunca houve e se essa folha caísse na terra onde nunca pisara, essa folha seria tão carregada de cor que a terra onde caíra nunca mais seria terra de novo. Seria essência de cor.

Mas seus cabelos eram apenas fios bem amarrados.

Sua cor era também o marrom de seus olhos. Um marrom avermelhado, cor de âmbar. E tão ambarina era a feição de seus olhos que a tristeza era uma gota de lágrima que aprisionava a vida do mundo quando escorria de seus lábios e se fazia cair no mundo desfalecido.

Ela era um vento de tristeza. E parada naquela estação, com os olhos afogados e baços e vagos e tão inteiramente abandonados, era vento de tristeza que abraçava o vazio entre aquelas pessoas que passavam por ali. Era som, lamento de tristeza. E se conseguisse falar, as palavras de tal modo perdidas e desconexas não seriam mais do que um canto de um pássaro morto em pleno voo que caía para sempre.

Memória de tudo. De todas as noites de verão. Era aquele homem de terno azul que deveria ficar. Que saísse do trem, que largasse toda aquela maldita viagem para a França e que ficasse com ela! Que não mais importassem aquelas bagagens de couro, o trabalho, o mundo, a morte do mundo. Que não lhe restasse nada no mundo além dela e que saltasse do trem. Não eram argumentos, eram balbúcias de amor. Não havia frases completas, raciocínios, encadeamentos, não havia nada além de meios suspiros contidos e aqueles olhos que diziam na cadência ritmada de um trovador da Itália o amor que lhes havia.

Que fugissem os dois! Se ele não saltasse fora ela que pulasse naquele trem! Que tudo que havia atrás de si se decompusesse numa grandíssima poça de lama e toda aquela tristeza e trauma e que todos aqueles homens de sobretudo marrom sumissem da eternidade para sempre! Que só existissem eles dois, que só existisse eles dois.

Em súplica, desfaz o laço que prende a fita que prende os cabelos que prendem a alma. O vento carrega os fios e carrega a fita e carrega a alma de Ana, que já não é mais gota presa em uma caverna, mas uma tempestade tão ébria de vida que abriu os braços e correu. A cada passo das sapatilhas se desmanchava tanto daquilo que por tanto tempo a prendera. Se desfalecia em quedas e traços perdidos cada sofrimento e dúvida. Era toda vento e chuva e se lançava naquele nunca mais.

Antes que seus passos se perdessem e que subissem de um salto os degraus do trem ela foi suspensa pelos braços de Antoine. Seus cabelos soltos e o vestido amarrotado, as duas mangas azul marinho do terno dele e um abraço repleto de abandono como só se abandonam duas existências inteiras. Não sorriam. Era felicidade de mais para sorrir. Era felicidade para nunca se entender. O trem partiu.

Não iria.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Impressão de um Sol nascente

Ele era uma linha do horizonte. Ele inexistia ali, exatamente ali a meio caminho entre o mar e o céu. Era uma pessoa em um barco que olhava e refletia enquanto vogava à deriva naquele espaço onde só inexistia ele, o mar e o céu.

O barco talvez fosse a coisa mais incompreensível para aquele homem. Não que o céu e o mar não tivessem suas máscaras e seus rostos escusos, mas o barco era algo que ele jamais compreendera sequer ao menos superficialmente. O barco era para ele o mistério dos mistérios.

O homem queria ser uma nuvem. Não simplesmente uma nuvem dessas de algodão doce, mas a nuvem que voasse mais alto do que todas, ele queria estar no topo de todas as nuvens e olhar o mundo do mesmo lugar de onde olha Deus. Mas ele estava preso ao barco.

Um dia tentara ser nuvem. Passou 30 eternidades com os olhos fechados e esqueceu-se de sua condição humana, esquecera seus braços, pernas, suas dores, suas mágoas, suas máculas, suas dores de cabeça, suas cores, suas costelas e suas lembranças.

Esquecera-se de si e do modo que os outros ensinaram a ver-se, esquecera-se dos outros, do ódio e da amargura dos outros. Deixara para trás o peso dos outros e flutuaria como nuvem. Mas deixara também a leveza do amor dos outros. Deixara para o mundo das lembranças abandonadas o sabor de algodão doce, o cheiro de mar e o vento no rosto. Obliterara da sua mente com tamanha raiva a existência alheia que deixara para si apenas metade das coisas a esquecer. A outra metade arrancara e deixara ferida aberta.

Quando abriu os olhos depois das 30 eternidades percebeu que não tinha se tornado nuvem, mas sim onda. Onda de mar fraturada que afundava cada vez mais no abissal sem fundo. Onda que se perdia que se contorcia e que se escorria entre outras ondas e correntes violentas.

Já não era linha do horizonte, mas banalidade corriqueira, sem espírito sem corpo sem inexistência perdida em uma existência medíocre. E tudo se escurecia e se sumia e se soçobrava.

Então ele fechou os olhos por mais uma eternidade.

Flutuou lentamente de volta à superfície, retomou sua forma de gente, sua alma e suas lembranças. Encontrou seu barco e dentro do barco encontrou as coisas que esquecera à força e a força que usara para esquecê-las. Desde então o barco tornou-se seu mistério.

A inexistência se parte em eternidades, se parte em esperas. Parte-se também em esperanças. A inexistência daquele homem naquele barco era uma sucessão de esperanças muito mais do que de eternidades. Esperanças de que um dia entendesse que não era nuvem nem onda mas algo tão distinto que não poderia inexistir senão naquele barco, que só poderia inexistir como linha do horizonte.

Mas esperava também que pudesse existir. Existir não ali, naquele espaço de nada, mas no Sol, que, um dia, esticando os dedos para levantar-se pelo céu e sobre o mar mostrasse a ele que não era nada além de um raio perdido.


domingo, 22 de janeiro de 2012

Meio homem sentado num café

Meio homem sentado num café. Meio homem frustrado sentado num café. A metade de homem pensa em Deus. Um Deus que definitivamente não beberia o café à sua frente. Café feio, café frio, frio e feio como se fosse café feito ontem. Não há como beber aquilo, ele suspira.

Pensa por um instante em jogar a xícara fora. Discretamente. Derramar o líquido com um movimento imprevisto do braço. Pedir desculpas e uma outra xícara. Mas o meio homem não faz isso. A metade que está sentada é a metade que reflete, não a que mexe os braços. Pensa em como seria se tivesse o poder de mexer os braços e derrubar a xícara dali, pensa em como seria se pudesse mexer as pernas e sair dali. Sem pagar.

Mas não pode. Não pode porque sabe que não é a metade que se mexe, é a metade que espera. A outra metade estava atrasada. Havia alguns dias.

Como um cantor que diante do público hesita. Como hesitaria se diante da imensidão da vida estivesse a canção que sai de sua garganta. Nos céus despencam as notas que a voz solta e em contornos e cabriolas barrocas suavemente pousam em silêncio nos ouvidos da plateia. Há falhas na voz e o timbre ressoante, consequência delas, propaga-se e estende-se até que em torpor pouse as mãos sobre o peito e curve-se em agradecimento. A canção, por instantes, é todo o cantor.

Pensava em nada. Já havia esgotado tudo o que havia para pensar desde o segundo dia de espera. Resolvera sentar-se no café e esperar em outro lugar. Agora não pensa mais, imagina. Imagens das mais variadas cores se sucedem em uma sequência seca. O que será que aconteceria se derrubasse o café? Uma mancha marrom que se estenderia por toda a mesa e tomaria da mesma cor tudo aquilo que ali havia. Marrom de uma ponta à outra e tudo completamente sujo.

Interrompe-se.

Como um bailarino no meio do salto dá-se conta da gravidade. Mas o bailarino não cai, ele sorri e dança. E de tal forma a dança se desenrola que o corpo do bailarino torna em movimento o som da orquestra. O corpo do bailarino não e prisão, é potência plena, de movimento e de ideia. O bailarino é seu corpo e seu corpo lhe é tudo. Ele torna-se tudo.

Não, por algum estranho motivo o marrom não tomaria tudo de fato. O marrom pararia em alguma parte e deixaria uma grande mancha na toalha imaculadamente branca. Imaculada? A toalha se estendia por toda a mesa e os anos de uso tinham deixado algumas manchas. Estranho. Não era branca de fato, era de um bege desbotado. Mas ainda assim o bege não seria marrom o suficiente para que a mancha e a toalha fosse uma coisa inteira.

Coisa inteira.

Como um homem que estando à beira de um precipício decide se jogar. E pula! E cai mas não morre, antes que seu corpo toque o chão ele se dissolve na totalidade daquilo e torna-se precipício e ar e queda e gente e universo.

Derrubou o café. Viu a mancha deslizar como um patinador de gelo, fez curvas, piruetas e dançou por entre todas as dobras que havia, vales e padrões e rendas. Serenamente derreteu e sujou tudo. Até parar. Parou, formara-se uma grande macha marrom. Viu a toalha.

Um homem sentado num café. O homem pensa em si.

Daguerreótipo

Paris.
Chuva.
Criança com um balão
outra mão na mão da mãe
um cachorro molhado
Mímico na calçada


Andando contra o vento.
Arrancam os telhados das casas
Torre Eiffel empinada
Desespero! Perdeu-se o chapéu
Risos.
Um senhor de sobretudo.

Uma máquina de escrever.
Tlec, tlec, tlec telectec tim!
Vuuush pum!
Sai um papel do chapéu.
Os olhos brilham.
Um casal de velhinhos.

Poeta recitando versos.
Julieta na janela.
Poeta pisca o olho.
Segundas intenções
(Arrière-Pensées)
Detrás da sacada,
Julieta entende.
Poeta desolado.
Risos histéricos

Velhinho pisca o olho para a velhinha

Uma parede invisível.
Meu Deus, e agora?!
Terror! Frisson! Desesperança!
Uma porta!
Gargalhadas.
Dois jovens.
Amor aos vinte anos. (ou em fuga)

Poeta pretencioso em um café.
Faz pose, estufa o peito
Bebe a xícara e derrama tudo.
Pragueja e derruba o garçon.
Foge sem pagar.
Risos histéricos.

Aplausos.
Agradecimentos.

Foto!

Ele nunca vai conhecer o mar

O seu quarto era escuro. A única centelha de luz vinha do cigarro meio apagado displicentemente ajeitado sobre o cinzeiro. A cama estava bagunçada, o lençol puído e velho. Não havia travesseiro. Havia uma mesa transbordando de papéis, um copo sujo de whisky no fundo. Papéis pelo chão. Uma maleta. Ele estava debruçado na janela. Respirando. Era noite sem lua e sem estrelas. Ele esperava.

Seus olhos eram baços. Ficaram sem brilho, seus olhos eram raquíticos. Seus braços eram fortes apenas para suster a cabeça apoiada sobre o parapeito sujo e velho. Seus braços estavam sujos e envelhecidos. Sua roupa era um conjunto de trapos, uma camisa rasgada, velha e envelhecida, uma calça, velha, puída e envelhecida. Ele era um trapo de gente coberto por trapos. Puído, rasgado e envelhecido. Ele esperava.

Na sua mesa, coberta por papéis havia um romance incompleto. Ela, chegara um dia num bar, sentara ao lado dele, pedira uma bebida e disse que o amava. No dia seguinte ela saiu do seu apartamento e sumiu. Ele ficara esperando.

Não sabia como terminar. Ela voltara um dia, dois anos depois. Entrara no mesmo bar, sentara no mesmo lugar, pedira a mesma bebida. Ele não estava lá. Quando ela se preparava para sair ele chegou. O tempo em suspensão assistiu aos quatro olhos dançarem por entre as cabeças que marchavam pelo salão. O sax tocava. Ela era Julia e ele era o louco. Ele a abraçou.

Quatro anos desde. Ela a intervalos regulares, ele a batidas descompassadas.  Ela dizendo que sentiria saudades, ele dizendo que esperaria. Ela sumiria. Saíram do bar. Andaram pela cidade, era noite sem lua e sem estrelas. Estavam juntos por uma noite e não sorriam. A noite morreria em breve. Deram um beijo de despedida. Ela dizendo que o esperaria, ele que sentiria saudades. Ele esperou.

Seis meses. Ela morrera. Um carro e uma chuva. Ele ficara sozinho. Ela fora enterrada à beira mar. Ele fora enterrado em uma pequena caixa de concreto com uma cama e uma janela. Tentou se matar. Falhou. Tentou definhar. Ele esperava.

Desde sempre ele esperara. Sabia que em dois anos ela voltaria. Ela sempre voltava. Ela voltou. Era noite, no mesmo bar, a mesma música, a mesma mesa. Ela apareceu na porta, suja, encharcada e com os olhos embaçados. Ele se levantou. Chorando.

A noite passava, chovia. Ela se sentara a mesa, pedira uma bebida. Ele pediu ao sax que tocasse a música. Eles choraram. A noite morreu em silêncio. Ele disse que não queria que ela se fosse. Ela disse que não queria ir. Eles se despediram. Sem explicações. Ela dizendo que sentiria saudades, ele dizendo que esperaria. Ela dizendo que nunca mais voltaria. Ele insistindo. Ele esperou.

Autobiografia.

Ela estava morta há dois anos. Nunca mais a vira. Esperava. Definhava. Naquela noite iria ao bar. Dois anos desde o último encontro. O mesmo lugar, a mesma bebida. Chovia. Sentou-se. Fez o pedido. Esperou. A noite se apagava, as pessoas saíam e começavam a limpar as mesas. Pediu que o sax tocasse a música. Ouviu até o fim, lágrima por lágrima contida. Fechou os olhos.

Ela entrara. Suja, molhada e com os olhos vermelhos. Ele, raquítico, em trapos. Correram. O tempo em suspensão. Os olhos se abraçaram. Ela não iria nunca mais. Ele não esperaria nunca mais. Sumiriam. Deixariam a cidade. As caixas de concreto. Fugiriam. Um bangalô à beira-mar. Ela nunca mais teria que ir embora, ele nunca mais teria que esperar. Nunca mais.

Abriu os olhos.

O piano completava as últimas notas da música, o sax preparava-se para guardar o instrumento. Ele teria que sair. Era tarde, o sol logo bateria à porta. Ele saiu. Ele esperara de mais.

Chovia. Estava tudo escuro. Atravessou a rua. Um carro. Uma freada. Um fim.

Jazia estendido, o rosto no chão, o corpo, deformado, as roupas, maltrapilhas e imundas. Não esperava mais.