sábado, 28 de janeiro de 2012

Terra de Siena

(esse texto é um recorte de um texto bem maior que está sendo escrito em paralelo a esse blog, como eu achei que ele funciona razoavelmente bem sozinho, resolvi postar aqui ^^)

E lá estava ela. O vestido verde do verde mais claro que a imaginação humana poderia conceber. Abandonada aos próprios pensamentos naquela estação. Antoine à sua frente. Seus pensamentos se interrompiam a cada pessoa que cruzava a sua vista e ainda assim... Ainda assim pensava em correr em direção a ele e abandonar os pensamentos e toda aquela estação e toda aquela existência goticulada e se carregar pelos braços dele.

Mas o vestido verde claro de moça bem comportada não a deixava fazer isso. Tampouco a deixava a fita do mesmo verde claro que prendia seus cabelos. Menina bem comportada era tudo que havia nas cores da indumentária que lhe vestia. Mas a verdadeira cor de Ana não era aquele verde claro que tanto se impregnara na sua memória daquela cena. A cor agora era outra. Era marrom.

Não aquele marrom pastoso e doente e comum que abundava naquela estação. Era o marrom dos seus cabelos que presos pela fita se formavam em um bem asseado rabo de cavalo. Era o marrom terra de Siena queimada dos seus cabelos. Nunca estivera em Siena, não sabia qual a cor da terra de lá, sequer podia imaginar que seus cabelos tivessem a cor da terra daquele chão que nunca pisara. Mas sabia, de corpo e alma, completamente!, que não era o mesmo marrom. Não poderia ser o mesmo marrom. Se algum dia fosse aos campos da Siena e deitasse na terra, seus cabelos estariam em casa e tomariam para si toda a energia daquela terra queimada pelo Sol e dançariam esguios com o vento quando ela se levantasse.

Mas àqueles cabelos da cor da terra queimada fadara o destino um pedaço de pano do verde claro mais bem artificializado que a imaginação humana tivera sucesso em fazer. Se as árvores da Siena onde nunca estivera soltassem uma única folha verde que nunca houve e se essa folha caísse na terra onde nunca pisara, essa folha seria tão carregada de cor que a terra onde caíra nunca mais seria terra de novo. Seria essência de cor.

Mas seus cabelos eram apenas fios bem amarrados.

Sua cor era também o marrom de seus olhos. Um marrom avermelhado, cor de âmbar. E tão ambarina era a feição de seus olhos que a tristeza era uma gota de lágrima que aprisionava a vida do mundo quando escorria de seus lábios e se fazia cair no mundo desfalecido.

Ela era um vento de tristeza. E parada naquela estação, com os olhos afogados e baços e vagos e tão inteiramente abandonados, era vento de tristeza que abraçava o vazio entre aquelas pessoas que passavam por ali. Era som, lamento de tristeza. E se conseguisse falar, as palavras de tal modo perdidas e desconexas não seriam mais do que um canto de um pássaro morto em pleno voo que caía para sempre.

Memória de tudo. De todas as noites de verão. Era aquele homem de terno azul que deveria ficar. Que saísse do trem, que largasse toda aquela maldita viagem para a França e que ficasse com ela! Que não mais importassem aquelas bagagens de couro, o trabalho, o mundo, a morte do mundo. Que não lhe restasse nada no mundo além dela e que saltasse do trem. Não eram argumentos, eram balbúcias de amor. Não havia frases completas, raciocínios, encadeamentos, não havia nada além de meios suspiros contidos e aqueles olhos que diziam na cadência ritmada de um trovador da Itália o amor que lhes havia.

Que fugissem os dois! Se ele não saltasse fora ela que pulasse naquele trem! Que tudo que havia atrás de si se decompusesse numa grandíssima poça de lama e toda aquela tristeza e trauma e que todos aqueles homens de sobretudo marrom sumissem da eternidade para sempre! Que só existissem eles dois, que só existisse eles dois.

Em súplica, desfaz o laço que prende a fita que prende os cabelos que prendem a alma. O vento carrega os fios e carrega a fita e carrega a alma de Ana, que já não é mais gota presa em uma caverna, mas uma tempestade tão ébria de vida que abriu os braços e correu. A cada passo das sapatilhas se desmanchava tanto daquilo que por tanto tempo a prendera. Se desfalecia em quedas e traços perdidos cada sofrimento e dúvida. Era toda vento e chuva e se lançava naquele nunca mais.

Antes que seus passos se perdessem e que subissem de um salto os degraus do trem ela foi suspensa pelos braços de Antoine. Seus cabelos soltos e o vestido amarrotado, as duas mangas azul marinho do terno dele e um abraço repleto de abandono como só se abandonam duas existências inteiras. Não sorriam. Era felicidade de mais para sorrir. Era felicidade para nunca se entender. O trem partiu.

Não iria.

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