domingo, 22 de janeiro de 2012

Ele nunca vai conhecer o mar

O seu quarto era escuro. A única centelha de luz vinha do cigarro meio apagado displicentemente ajeitado sobre o cinzeiro. A cama estava bagunçada, o lençol puído e velho. Não havia travesseiro. Havia uma mesa transbordando de papéis, um copo sujo de whisky no fundo. Papéis pelo chão. Uma maleta. Ele estava debruçado na janela. Respirando. Era noite sem lua e sem estrelas. Ele esperava.

Seus olhos eram baços. Ficaram sem brilho, seus olhos eram raquíticos. Seus braços eram fortes apenas para suster a cabeça apoiada sobre o parapeito sujo e velho. Seus braços estavam sujos e envelhecidos. Sua roupa era um conjunto de trapos, uma camisa rasgada, velha e envelhecida, uma calça, velha, puída e envelhecida. Ele era um trapo de gente coberto por trapos. Puído, rasgado e envelhecido. Ele esperava.

Na sua mesa, coberta por papéis havia um romance incompleto. Ela, chegara um dia num bar, sentara ao lado dele, pedira uma bebida e disse que o amava. No dia seguinte ela saiu do seu apartamento e sumiu. Ele ficara esperando.

Não sabia como terminar. Ela voltara um dia, dois anos depois. Entrara no mesmo bar, sentara no mesmo lugar, pedira a mesma bebida. Ele não estava lá. Quando ela se preparava para sair ele chegou. O tempo em suspensão assistiu aos quatro olhos dançarem por entre as cabeças que marchavam pelo salão. O sax tocava. Ela era Julia e ele era o louco. Ele a abraçou.

Quatro anos desde. Ela a intervalos regulares, ele a batidas descompassadas.  Ela dizendo que sentiria saudades, ele dizendo que esperaria. Ela sumiria. Saíram do bar. Andaram pela cidade, era noite sem lua e sem estrelas. Estavam juntos por uma noite e não sorriam. A noite morreria em breve. Deram um beijo de despedida. Ela dizendo que o esperaria, ele que sentiria saudades. Ele esperou.

Seis meses. Ela morrera. Um carro e uma chuva. Ele ficara sozinho. Ela fora enterrada à beira mar. Ele fora enterrado em uma pequena caixa de concreto com uma cama e uma janela. Tentou se matar. Falhou. Tentou definhar. Ele esperava.

Desde sempre ele esperara. Sabia que em dois anos ela voltaria. Ela sempre voltava. Ela voltou. Era noite, no mesmo bar, a mesma música, a mesma mesa. Ela apareceu na porta, suja, encharcada e com os olhos embaçados. Ele se levantou. Chorando.

A noite passava, chovia. Ela se sentara a mesa, pedira uma bebida. Ele pediu ao sax que tocasse a música. Eles choraram. A noite morreu em silêncio. Ele disse que não queria que ela se fosse. Ela disse que não queria ir. Eles se despediram. Sem explicações. Ela dizendo que sentiria saudades, ele dizendo que esperaria. Ela dizendo que nunca mais voltaria. Ele insistindo. Ele esperou.

Autobiografia.

Ela estava morta há dois anos. Nunca mais a vira. Esperava. Definhava. Naquela noite iria ao bar. Dois anos desde o último encontro. O mesmo lugar, a mesma bebida. Chovia. Sentou-se. Fez o pedido. Esperou. A noite se apagava, as pessoas saíam e começavam a limpar as mesas. Pediu que o sax tocasse a música. Ouviu até o fim, lágrima por lágrima contida. Fechou os olhos.

Ela entrara. Suja, molhada e com os olhos vermelhos. Ele, raquítico, em trapos. Correram. O tempo em suspensão. Os olhos se abraçaram. Ela não iria nunca mais. Ele não esperaria nunca mais. Sumiriam. Deixariam a cidade. As caixas de concreto. Fugiriam. Um bangalô à beira-mar. Ela nunca mais teria que ir embora, ele nunca mais teria que esperar. Nunca mais.

Abriu os olhos.

O piano completava as últimas notas da música, o sax preparava-se para guardar o instrumento. Ele teria que sair. Era tarde, o sol logo bateria à porta. Ele saiu. Ele esperara de mais.

Chovia. Estava tudo escuro. Atravessou a rua. Um carro. Uma freada. Um fim.

Jazia estendido, o rosto no chão, o corpo, deformado, as roupas, maltrapilhas e imundas. Não esperava mais.

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