domingo, 22 de janeiro de 2012

Meio homem sentado num café

Meio homem sentado num café. Meio homem frustrado sentado num café. A metade de homem pensa em Deus. Um Deus que definitivamente não beberia o café à sua frente. Café feio, café frio, frio e feio como se fosse café feito ontem. Não há como beber aquilo, ele suspira.

Pensa por um instante em jogar a xícara fora. Discretamente. Derramar o líquido com um movimento imprevisto do braço. Pedir desculpas e uma outra xícara. Mas o meio homem não faz isso. A metade que está sentada é a metade que reflete, não a que mexe os braços. Pensa em como seria se tivesse o poder de mexer os braços e derrubar a xícara dali, pensa em como seria se pudesse mexer as pernas e sair dali. Sem pagar.

Mas não pode. Não pode porque sabe que não é a metade que se mexe, é a metade que espera. A outra metade estava atrasada. Havia alguns dias.

Como um cantor que diante do público hesita. Como hesitaria se diante da imensidão da vida estivesse a canção que sai de sua garganta. Nos céus despencam as notas que a voz solta e em contornos e cabriolas barrocas suavemente pousam em silêncio nos ouvidos da plateia. Há falhas na voz e o timbre ressoante, consequência delas, propaga-se e estende-se até que em torpor pouse as mãos sobre o peito e curve-se em agradecimento. A canção, por instantes, é todo o cantor.

Pensava em nada. Já havia esgotado tudo o que havia para pensar desde o segundo dia de espera. Resolvera sentar-se no café e esperar em outro lugar. Agora não pensa mais, imagina. Imagens das mais variadas cores se sucedem em uma sequência seca. O que será que aconteceria se derrubasse o café? Uma mancha marrom que se estenderia por toda a mesa e tomaria da mesma cor tudo aquilo que ali havia. Marrom de uma ponta à outra e tudo completamente sujo.

Interrompe-se.

Como um bailarino no meio do salto dá-se conta da gravidade. Mas o bailarino não cai, ele sorri e dança. E de tal forma a dança se desenrola que o corpo do bailarino torna em movimento o som da orquestra. O corpo do bailarino não e prisão, é potência plena, de movimento e de ideia. O bailarino é seu corpo e seu corpo lhe é tudo. Ele torna-se tudo.

Não, por algum estranho motivo o marrom não tomaria tudo de fato. O marrom pararia em alguma parte e deixaria uma grande mancha na toalha imaculadamente branca. Imaculada? A toalha se estendia por toda a mesa e os anos de uso tinham deixado algumas manchas. Estranho. Não era branca de fato, era de um bege desbotado. Mas ainda assim o bege não seria marrom o suficiente para que a mancha e a toalha fosse uma coisa inteira.

Coisa inteira.

Como um homem que estando à beira de um precipício decide se jogar. E pula! E cai mas não morre, antes que seu corpo toque o chão ele se dissolve na totalidade daquilo e torna-se precipício e ar e queda e gente e universo.

Derrubou o café. Viu a mancha deslizar como um patinador de gelo, fez curvas, piruetas e dançou por entre todas as dobras que havia, vales e padrões e rendas. Serenamente derreteu e sujou tudo. Até parar. Parou, formara-se uma grande macha marrom. Viu a toalha.

Um homem sentado num café. O homem pensa em si.

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